Alocução proferida, no Auditório Municipal de Gaia, em 18 de Junho de 2013, por Júlio Gago, presidente do CCT/TEP

Há 60 anos, no dia 18 de Junho de 1953, pelas 21H30M, no Teatro Sá da Bandeira, com dois terços dos lugares da sala ocupados, o Teatro Experimental do Porto era apresentado pela primeira vez ao público da cidade onde nascia. Por apenas ter alvará como associação e não como entidade produtora de espectáculos, e por motivos políticos, esta primeira apresentação foi promovida pelo Clube Fenianos Portuenses, um dos locais no qual muitos dos ensaios decorreram, incluindo a primeira aula de António Pedro, em 7 de Março desse ano. Mas, os ensaios também foram feitos em vários outros locais como: a sede da SEN (Sociedade Editora Norte), o atelier do pintor António Carneiro e, até nos bancos de jardim da Avenida dos Aliados.

Era noite, e fora numa outra noite, de Novembro de 1950, algures por meados desse mês, em noite chuvosa e fria, que Manuel Breda Simões, então professor na Escola Comercial Oliveira Martins, liderando um grupo de professores da mesma escola, e alguns amigos que frequentavam o café Leão D’Ouro, na Batalha, presidiu a uma reunião nas instalações do Instituto Francês no Porto, então na Rua Cândido dos Reis, propondo a criação de uma associação denominada Círculo de Cultura Teatral, que deveria criar um grupo de Teatro Experimental do Porto. Nessa reunião foram logo eleitas uma comissão para a redacção dos estatutos e outra para angariação de sócios. Assistiu o jornalista João Arnaldo Maia, em reportagem para o jornal O Comércio do Porto, que se interessou de imediato pelo projecto, integrando-o, vindo a ser o elemento central em todas as diligências posteriores. A 1 de Fevereiro de 1951 os estatutos foram aprovados por 50 sócios fundadores, numa Assembleia realizada na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, presidida por Edgar Carneiro. Mas, seria necessário esperar um ano e oito meses para a associação ser legalizada, em que grande parte dos fundadores se afastou, e só pela tenacidade e diligências de João Arnaldo Maia, foi despachado, pelo então Governador Civil do Porto, o alvará que legalizou a instituição. Neste intervalo, foi necessário tornear as imposições da ditadura e até um caso de polícia. Os novos sócios iam aparecendo, o interesse pelo movimento dos teatros experimentais, muito divulgado na sequência da II Guerra Mundial por toda Europa, despertava vontades e os reflexos da acção de oposição ao regime do Movimento de Unidade Democrática, sobretudo na sua vertente juvenil, o MUD-Juvenil, cativava para a cultura inúmeros jovens, que tinham em comum uma grande vontade de agir culturalmente, mas uma grande ignorância sobre como fazer teatro, dando protagonismo a essa expressão que chegava de além-fronteiras, a mise-en-scène, ou seja, a encenação. Várias foram as peças que tiveram leituras feitas em conjunto, vários os candidatos a ensaiadores, nos quais se destacou o jornalista Athayde Perry, marido da actriz Laura Perry, ambos com alguma experiência de amadores. Mas, nada vingava. Até que um dos jovens, o poeta Eugénio de Andrade, sugeriu uma ida a Moledo de Minho para convidar António Pedro, que farto de Lisboa, e após um manguito ao Parque Mayer, se retirara para a terra dos seus avoengos minhotos, abrindo uma fase criativa nova, então através da cerâmica. A luta que empreendera na capital, na fase final dos anos quarenta, para impor um novo tipo de teatro e uma nova abordagem da arte cénica fracassara, por imposição da Censura e do poder político, mas, também, do meio teatral que, maioritariamente, como sempre, não desejava mudar nada ou apenas um pouco, para que tudo continuasse na mesma. Os doze artigos que António Pedro escreveu no “Diário de Lisboa”, e outros no “Mundo Literário” ou na imprensa diária, os dois primeiros “Cadernos dum Amador de Teatro”, os espectáculos que dirigiu nos teatros do Salitre, Ginásio e Apolo, como encenador, mas, também, a luta que promovera contra o salazarismo, na tentativa de criação do Partido Socialista, através do grupo do café Smarta, e na candidatura oposicionista de Norton de Matos, provocaram-lhe algum desencanto e a retirada para Moledo. Ele que fora fascista em 1934 e democratizado em Londres, na II Guerra Mundial, onde estivera ao serviço da BBC, não mais voltaria a intervir politicamente, mas voltaria ao teatro.

Eugénio de Andrade e Alexandre Babo deslocaram-se a Moledo, convidando-o para fazer um curso de iniciação ao teatro, ao que acedeu “relutantemente”, como diria mais tarde, mas o entusiasmo que encontrou, no Porto, por parte dos jovens candidatos, naquele dia 7 de Março de 1953, prolongado nas aulas e ensaios seguintes, reconciliou-o com a arte de Talma e David Garrick. Mais, deu-lhe um novo alento para provocar em Portugal uma aproximação à vanguarda do teatro europeu e mundial de que vira as primeiras expressões em Paris (1934-1936), Rio de Janeiro e S. Paulo (1939-1940), Londres (1944-1946). A encenação era o seu objectivo; toda a sua poesia, as suas crónicas, a sua pintura e a sua escultura, as suas múltiplas facetas, viveram em função do teatro e da encenação.

Nos seus primeiros alunos estavam aqueles que vieram a integrar o primeiro espectáculo do TEP, mas, também, outros que nos Corpos Gerentes e entre os associados terão demonstrado menos apetência pelo palco, e mais por um profundo conhecimento da cultura teatral. Entre aqueles que frequentavam as aulas de António Pedro e não vieram a desempenhar funções de representação, de criatividade ou bastidores, e que se podem ver nas fotografias que dispomos, estavam o Orlando Juncal e a Margarida Carmona, avós do actual director artístico do TEP, Gonçalo Amorim, mas, também, o sempre presente João Arnaldo Maia e a sua esposa, Orquídea, o Armando Varejão, marido da Amélia, e o Amílcar Paulo.

Depois de inúmeras peripécias, perseguições políticas e boatos postos a circular, fortíssimas dificuldades financeiras e de espaço para ensaios, a noite de 18 de Junho de 1953, chegou. Mas, não resisto a contar dois episódios anteriores à estreia: durante os ensaios, faleceu na União Soviética, Staline, e paralelamente, a Direcção não dispunha de dinheiro para o guarda-roupa, o que fez António Pedro decidir que os actores entrariam com fatos macaco que haviam trazido para as aulas e ensaios, começando a correr o boato de que o TEP queria homenagear o “Pai dos Povos”, como era conhecido Staline, e o Partido Comunista; o segundo, foi a proibição de que no final de “A Nau Catrineta”, se cumprisse o suicídio do capitão, acto que a moral salazarista não permitia que fosse público. Claro, que foram encontradas as soluções alternativas.

E, pelas 21H30, perante o nervosismo de todos os intervenientes (só Correia Alves já tinha subido a um palco), e, após as pancadas de início de espectáculo (não as de Molière, que só esporadicamente foram usadas em Portugal), foi dado início à representação. E, foi um poeta, também actor nesse e noutros espectáculos, Egito Gonçalves, que disse as primeiras palavras de “A Gota de Mel”: “Era Uma Vez…”

António Pedro havia feito de todos os seus alunos, criadores e técnicos do espectáculo, em função das suas aptidões. Partilhou, mesmo, a encenação de “A Gota de Mel” com Alexandre Babo.

E, a sequência do espectáculo começou. Primeiro “A Gota de Mel”, do francês Léon Chancerel, adaptado livremente por António Pedro, defendendo-a de eventuais cortes da Censura, mas fazendo com que este coral pela paz se transformasse no cartão de visita dos anos cinquenta. Viria a ser proibido após o início da Guerra Colonial.

Destaquemos os intervenientes do primeiro espectáculo, constituído pelas três peças em um acto, que António Pedro tinha escolhido para exemplificar as suas aulas de introdução ao teatro.

O espectáculo foi iniciado com “A Gota de Mel”, em que participaram: Egito Gonçalves, Dulce Pessoa, Luís Nascimento, João Guedes, Baptista Fernandes, Cremilda de Vasconcelos, Amélia Varejão e Maria Marcelina Morais.

Após o primeiro intervalo, uma adaptação teatral de Egito Gonçalves, a partir de uma história tradicional “A Nau Catrineta”, trabalhada nos ensaios, com dramatização, encenação e figurinos de António Pedro e um fundo musical escrito expressamente para este poema, pelo compositor Cordeiro dos Santos, executado por 12 professores da Orquestra Sinfónica do Porto, dirigida pelo autor. Foram intérpretes: Dalila Rocha, Natércia Pimentel, hoje aqui presente, Manuela Delgado, Amadeu Meireles, Alexandre Babo, Júlia Babo, António Maria da Silva, Américo Pessoa e Correia Alves.

Após novo intervalo, eram sempre dois os intervalos, “Um Pedido de Casamento”, de Anton Tcheckov, em versão portuguesa de Correia Alves. Foram intérpretes: Dalila Rocha (a Noiva), Correia Alves (o Noivo) e João Guedes (o Pai), em encenação e cenário de António Pedro. A cenografia do espectáculo foi de Fernando Fonseca e a contra-regra de Abílio Cordeiro.

Seguir-se-iam representações: em Aveiro, Viana do Castelo, Guimarães (ao ar livre), no Clube de Leça, em Leça da Palmeira, no Grupo dos Modestos, no Porto, e, de novo, no Teatro Sá da Bandeira, agora com lotação esgotada. Os aplausos surgiram de todos os quadrantes, Luiz Francisco Rebello, espectador na estreia, falou de um momento único, Carlos Porto disse que provavelmente a maioria dos espectadores não percebeu que estava perante um momento histórico no teatro português…

E, começou um longo caminho de 60 anos, que se projectará no futuro. Até Outubro de 1957 como amadores, depois a profissionalização.

António Pedro, finalmente com condições para desenvolver o seu projecto apesar das perseguições do regime à instituição, introduziu a encenação moderna e o sentido de unidade do espectáculo no teatro português. Foi o motor dos primeiros oito anos de TEP, com parceiros excepcionais como Augusto Gomes, João Guedes, Dalila Rocha, Eduardo Luís, Alda Rodrigues, Baptista Fernandes, Vasco de Lima Couto, Fernanda Gonçalves, Mário Jacques, Cecília Guimarães, Fernando Aroso, Deniz Jacinto, Fernando Teixeira e tantos outros.

Alugada uma antiga lavandaria da Confiança, fez-se o primeiro Teatro de Bolso, da Península Ibérica, inaugurado em 8 de Maio de 1956 (viria a ser destruído em Dezembro de 1980); começaram a ser revelados autores fundamentais do teatro, nacionais e mundiais (231 até hoje); envolveram-se grandes figuras da cena, das artes plásticas, da música, do cinema, da política oposicionista ao antigo regime e do novo regime; criou-se o FITEI (com a então jovem Seiva Trupe)… Um longo percurso; nesta intervenção necessariamente resumidíssimo. Grandes momentos de esperança, o maior dos quais provavelmente o da chegada de Ruggero Jacobbi, em 1966, (posto na fronteira pela Pide, três semanas depois), mas, também, os da chegada de Ruy de Carvalho, Carlos Avilez, Fernanda Alves e Isabel de Castro, Júlio Castronuovo, Angel Facio, João Lourenço, Mário Viegas, enfim. Momentos únicos do papel da colaboração das artes visuais, em que, para além dos já citados, se estrearam no TEP: Ângelo de Sousa, José Rodrigues, Armando Alves, Jorge Pinheiro, Júlio Resende, Jaime Isidoro, Fernando Filipe, Carlos Barreira e tantos outros, além da passagem de alguns já consagrados como Mário Alberto e Fernando Azevedo. Também, neste campo, não vou alongar a minha intervenção. Estamos a celebrar o primeiro espectáculo. Estamos a preparar o futuro.

Estivemos na origem de outras companhias profissionais: o Teatro Experimental de Cascais, a Seiva Trupe, enfim…

Mas, não posso deixar de fazer uma referência à associação Círculo de Cultura Teatral/Teatro Experimental do Porto, o CCT/TEP. O CCT/TEP sempre foi sobretudo o TEP. Nos anos cinquenta, a associação crescendo foi sobretudo o TEP; o TEP afirmando-se reforçou a associação. Sem a associação, o TEP há muito teria desaparecido – teriam sido suficientes as crises internas, a repressão do anterior regime e as interrupções da sua acção. E, foram grandes dirigentes, também, aqueles que forjaram e desenvolveram a acção do TEP.

Fomos do Porto, somos de Vila Nova de Gaia. Do Porto chegámos a Portugal e ao Mundo, mas quase desaparecíamos. Em Vila Nova de Gaia reencontramos mundo, assumimos novas vontades, celebramos a Vida e o Teatro. Graças ao apoio do Município, e, muito particularmente, de Luís Filipe Menezes, assumimos a esperança, e temos vindo a caminhar para que esta renovação, recentemente encetada, tenha sucesso.

Estamos num momento histórico da instituição. E não o afirmo de ânimo leve. Tenho a consciência, e a certeza, de que muito vai mudar no CCT/TEP nos próximos tempos. Estamos a credibilizar uma geração que, à partida, não necessita desses créditos pelo seu engenho e arte. Uma instituição histórica do Teatro Português, uma referência para todos os estudiosos e práticos das artes cénicas, mas uma estrutura que poderia fenecer se não recebesse os paliativos do rejuvenescimento. Sobre corpos e mentes que a ergueram, estão a despontar novos corpos e mentes, com futuro.

Somos, sobretudo, uma instituição que tem no seu historial a referência de António Pedro como principal, talvez também a de Augusto Gomes, João Guedes, Dalila Rocha… Pelo que já fez, até chegar ao nosso convívio, como havia feito António Pedro, o Gonçalo é o futuro do TEP, sempre com a associação a seu lado. Tem garra, inteligência, criatividade, para isso.

Há anos, nos 50 anos do TEP, escrevi um texto que intitulei “Não nos Mataram, Semearam-nos”, recorrendo à expressão bíblica. Hoje, direi: “Semeámos de novo, colhei os frutos.”