Há 60 anos, no
dia 18 de Junho de 1953, pelas 21H30M, no Teatro Sá da Bandeira, com dois
terços dos lugares da sala ocupados, o Teatro Experimental do Porto era apresentado
pela primeira vez ao público da cidade onde nascia. Por apenas ter alvará como
associação e não como entidade produtora de espectáculos, e por motivos
políticos, esta primeira apresentação foi promovida pelo Clube Fenianos
Portuenses, um dos locais no qual muitos dos ensaios decorreram, incluindo a
primeira aula de António Pedro, em 7 de Março desse ano. Mas, os ensaios também
foram feitos em vários outros locais como: a sede da SEN (Sociedade Editora
Norte), o atelier do pintor António Carneiro e, até nos bancos de jardim da
Avenida dos Aliados.
Era noite, e
fora numa outra noite, de Novembro de 1950, algures por meados desse mês, em
noite chuvosa e fria, que Manuel Breda Simões, então professor na Escola
Comercial Oliveira Martins, liderando um grupo de professores da mesma escola,
e alguns amigos que frequentavam o café Leão D’Ouro, na Batalha, presidiu a uma
reunião nas instalações do Instituto Francês no Porto, então na Rua Cândido dos
Reis, propondo a criação de uma associação denominada Círculo de Cultura
Teatral, que deveria criar um grupo de Teatro Experimental do Porto. Nessa
reunião foram logo eleitas uma comissão para a redacção dos estatutos e outra
para angariação de sócios. Assistiu o jornalista João Arnaldo Maia, em
reportagem para o jornal O Comércio do Porto, que se interessou de imediato
pelo projecto, integrando-o, vindo a ser o elemento central em todas as
diligências posteriores. A 1 de Fevereiro de 1951 os estatutos foram aprovados
por 50 sócios fundadores, numa Assembleia realizada na Associação de
Jornalistas e Homens de Letras do Porto, presidida por Edgar Carneiro. Mas,
seria necessário esperar um ano e oito meses para a associação ser legalizada,
em que grande parte dos fundadores se afastou, e só pela tenacidade e
diligências de João Arnaldo Maia, foi despachado, pelo então Governador Civil
do Porto, o alvará que legalizou a instituição. Neste intervalo, foi necessário
tornear as imposições da ditadura e até um caso de polícia. Os novos sócios iam
aparecendo, o interesse pelo movimento dos teatros experimentais, muito
divulgado na sequência da II Guerra Mundial por toda Europa, despertava
vontades e os reflexos da acção de oposição ao regime do Movimento de Unidade
Democrática, sobretudo na sua vertente juvenil, o MUD-Juvenil, cativava para a
cultura inúmeros jovens, que tinham em comum uma grande vontade de agir
culturalmente, mas uma grande ignorância sobre como fazer teatro, dando
protagonismo a essa expressão que chegava de além-fronteiras, a mise-en-scène,
ou seja, a encenação. Várias foram as peças que tiveram leituras feitas em
conjunto, vários os candidatos a ensaiadores, nos quais se destacou o
jornalista Athayde Perry, marido da actriz Laura Perry, ambos com alguma
experiência de amadores. Mas, nada vingava. Até que um dos jovens, o poeta
Eugénio de Andrade, sugeriu uma ida a Moledo de Minho para convidar António
Pedro, que farto de Lisboa, e após um manguito ao Parque Mayer, se retirara
para a terra dos seus avoengos minhotos, abrindo uma fase criativa nova, então
através da cerâmica. A luta que empreendera na capital, na fase final dos anos
quarenta, para impor um novo tipo de teatro e uma nova abordagem da arte cénica
fracassara, por imposição da Censura e do poder político, mas, também, do meio
teatral que, maioritariamente, como sempre, não desejava mudar nada ou apenas
um pouco, para que tudo continuasse na mesma. Os doze artigos que António Pedro
escreveu no “Diário de Lisboa”, e outros no “Mundo Literário” ou na imprensa
diária, os dois primeiros “Cadernos dum Amador de Teatro”, os espectáculos que
dirigiu nos teatros do Salitre, Ginásio e Apolo, como encenador, mas, também, a
luta que promovera contra o salazarismo, na tentativa de criação do Partido
Socialista, através do grupo do café Smarta, e na candidatura oposicionista de
Norton de Matos, provocaram-lhe algum desencanto e a retirada para Moledo. Ele
que fora fascista em 1934 e democratizado em Londres, na II Guerra Mundial,
onde estivera ao serviço da BBC, não mais voltaria a intervir politicamente,
mas voltaria ao teatro.
Eugénio de
Andrade e Alexandre Babo deslocaram-se a Moledo, convidando-o para fazer um
curso de iniciação ao teatro, ao que acedeu “relutantemente”, como diria mais
tarde, mas o entusiasmo que encontrou, no Porto, por parte dos jovens candidatos,
naquele dia 7 de Março de 1953, prolongado nas aulas e ensaios seguintes,
reconciliou-o com a arte de Talma e David Garrick. Mais, deu-lhe um novo alento
para provocar em Portugal uma aproximação à vanguarda do teatro europeu e
mundial de que vira as primeiras expressões em Paris (1934-1936), Rio de
Janeiro e S. Paulo (1939-1940), Londres (1944-1946). A encenação era o seu
objectivo; toda a sua poesia, as suas crónicas, a sua pintura e a sua
escultura, as suas múltiplas facetas, viveram em função do teatro e da
encenação.
Nos seus
primeiros alunos estavam aqueles que vieram a integrar o primeiro espectáculo
do TEP, mas, também, outros que nos Corpos Gerentes e entre os associados terão
demonstrado menos apetência pelo palco, e mais por um profundo conhecimento da
cultura teatral. Entre aqueles que frequentavam as aulas de António Pedro e não
vieram a desempenhar funções de representação, de criatividade ou bastidores, e
que se podem ver nas fotografias que dispomos, estavam o Orlando Juncal e a
Margarida Carmona, avós do actual director artístico do TEP, Gonçalo Amorim,
mas, também, o sempre presente João Arnaldo Maia e a sua esposa, Orquídea, o
Armando Varejão, marido da Amélia, e o Amílcar Paulo.
Depois de
inúmeras peripécias, perseguições políticas e boatos postos a circular,
fortíssimas dificuldades financeiras e de espaço para ensaios, a noite de 18 de
Junho de 1953, chegou. Mas, não resisto a contar dois episódios anteriores à
estreia: durante os ensaios, faleceu na União Soviética, Staline, e paralelamente,
a Direcção não dispunha de dinheiro para o guarda-roupa, o que fez António
Pedro decidir que os actores entrariam com fatos macaco que haviam trazido para
as aulas e ensaios, começando a correr o boato de que o TEP queria homenagear o
“Pai dos Povos”, como era conhecido Staline, e o Partido Comunista; o segundo,
foi a proibição de que no final de “A Nau Catrineta”, se cumprisse o suicídio
do capitão, acto que a moral salazarista não permitia que fosse público. Claro,
que foram encontradas as soluções alternativas.
E, pelas
21H30, perante o nervosismo de todos os intervenientes (só Correia Alves já
tinha subido a um palco), e, após as pancadas de início de espectáculo (não as
de Molière, que só esporadicamente foram usadas em Portugal), foi dado início à
representação. E, foi um poeta, também actor nesse e noutros espectáculos,
Egito Gonçalves, que disse as primeiras palavras de “A Gota de Mel”: “Era Uma
Vez…”
António Pedro
havia feito de todos os seus alunos, criadores e técnicos do espectáculo, em
função das suas aptidões. Partilhou, mesmo, a encenação de “A Gota de Mel” com
Alexandre Babo.
E, a sequência
do espectáculo começou. Primeiro “A Gota de Mel”, do francês Léon Chancerel,
adaptado livremente por António Pedro, defendendo-a de eventuais cortes da Censura,
mas fazendo com que este coral pela paz se transformasse no cartão de visita
dos anos cinquenta. Viria a ser proibido após o início da Guerra Colonial.
Destaquemos os
intervenientes do primeiro espectáculo, constituído pelas três peças em um
acto, que António Pedro tinha escolhido para exemplificar as suas aulas de
introdução ao teatro.
O espectáculo
foi iniciado com “A Gota de Mel”, em
que participaram: Egito Gonçalves, Dulce Pessoa, Luís Nascimento, João Guedes,
Baptista Fernandes, Cremilda de Vasconcelos, Amélia Varejão e Maria Marcelina
Morais.
Após o
primeiro intervalo, uma adaptação teatral de Egito Gonçalves, a partir de uma
história tradicional “A Nau Catrineta”,
trabalhada nos ensaios, com dramatização, encenação e figurinos de António
Pedro e um fundo musical escrito expressamente para este poema, pelo compositor
Cordeiro dos Santos, executado por 12 professores da Orquestra Sinfónica do
Porto, dirigida pelo autor. Foram intérpretes: Dalila Rocha, Natércia Pimentel,
hoje aqui presente, Manuela Delgado, Amadeu Meireles, Alexandre Babo, Júlia
Babo, António Maria da Silva, Américo Pessoa e Correia Alves.
Após novo
intervalo, eram sempre dois os intervalos, “Um
Pedido de Casamento”, de Anton Tcheckov, em versão portuguesa de Correia
Alves. Foram intérpretes: Dalila Rocha (a Noiva), Correia Alves (o Noivo) e
João Guedes (o Pai), em encenação e cenário de António Pedro. A cenografia do
espectáculo foi de Fernando Fonseca e a contra-regra de Abílio Cordeiro.
Seguir-se-iam
representações: em Aveiro, Viana do Castelo, Guimarães (ao ar livre), no Clube
de Leça, em Leça da Palmeira, no Grupo dos Modestos, no Porto, e, de novo, no
Teatro Sá da Bandeira, agora com lotação esgotada. Os aplausos surgiram de
todos os quadrantes, Luiz Francisco Rebello, espectador na estreia, falou de um
momento único, Carlos Porto disse que provavelmente a maioria dos espectadores
não percebeu que estava perante um momento histórico no teatro português…
E, começou um
longo caminho de 60 anos, que se projectará no futuro. Até Outubro de 1957 como
amadores, depois a profissionalização.
António Pedro,
finalmente com condições para desenvolver o seu projecto apesar das
perseguições do regime à instituição, introduziu a encenação moderna e o
sentido de unidade do espectáculo no teatro português. Foi o motor dos
primeiros oito anos de TEP, com parceiros excepcionais como Augusto Gomes, João
Guedes, Dalila Rocha, Eduardo Luís, Alda Rodrigues, Baptista Fernandes, Vasco
de Lima Couto, Fernanda Gonçalves, Mário Jacques, Cecília Guimarães, Fernando
Aroso, Deniz Jacinto, Fernando Teixeira e tantos outros.
Alugada uma
antiga lavandaria da Confiança, fez-se o primeiro Teatro de Bolso, da Península
Ibérica, inaugurado em 8 de Maio de 1956 (viria a ser destruído em Dezembro de
1980); começaram a ser revelados autores fundamentais do teatro, nacionais e
mundiais (231 até hoje); envolveram-se grandes figuras da cena, das artes
plásticas, da música, do cinema, da política oposicionista ao antigo regime e
do novo regime; criou-se o FITEI (com a então jovem Seiva Trupe)… Um longo
percurso; nesta intervenção necessariamente resumidíssimo. Grandes momentos de
esperança, o maior dos quais provavelmente o da chegada de Ruggero Jacobbi, em
1966, (posto na fronteira pela Pide, três semanas depois), mas, também, os da
chegada de Ruy de Carvalho, Carlos Avilez, Fernanda Alves e Isabel de Castro,
Júlio Castronuovo, Angel Facio, João Lourenço, Mário Viegas, enfim. Momentos
únicos do papel da colaboração das artes visuais, em que, para além dos já
citados, se estrearam no TEP: Ângelo de Sousa, José Rodrigues, Armando Alves,
Jorge Pinheiro, Júlio Resende, Jaime Isidoro, Fernando Filipe, Carlos Barreira
e tantos outros, além da passagem de alguns já consagrados como Mário Alberto e
Fernando Azevedo. Também, neste campo, não vou alongar a minha intervenção.
Estamos a celebrar o primeiro espectáculo. Estamos a preparar o futuro.
Estivemos na
origem de outras companhias profissionais: o Teatro Experimental de Cascais, a
Seiva Trupe, enfim…
Mas, não posso
deixar de fazer uma referência à associação Círculo de Cultura Teatral/Teatro
Experimental do Porto, o CCT/TEP. O CCT/TEP sempre foi sobretudo o TEP. Nos
anos cinquenta, a associação crescendo foi sobretudo o TEP; o TEP afirmando-se
reforçou a associação. Sem a associação, o TEP há muito teria desaparecido –
teriam sido suficientes as crises internas, a repressão do anterior regime e as
interrupções da sua acção. E, foram grandes dirigentes, também, aqueles que
forjaram e desenvolveram a acção do TEP.
Fomos do
Porto, somos de Vila Nova de Gaia. Do Porto chegámos a Portugal e ao Mundo, mas
quase desaparecíamos. Em
Vila Nova de Gaia reencontramos mundo, assumimos novas
vontades, celebramos a Vida e o Teatro. Graças ao apoio do Município, e, muito
particularmente, de Luís Filipe Menezes, assumimos a esperança, e temos vindo a
caminhar para que esta renovação, recentemente encetada, tenha sucesso.
Estamos num
momento histórico da instituição. E não o afirmo de ânimo leve. Tenho a
consciência, e a certeza, de que muito vai mudar no CCT/TEP nos próximos
tempos. Estamos a credibilizar uma geração que, à partida, não necessita desses
créditos pelo seu engenho e arte. Uma instituição histórica do Teatro
Português, uma referência para todos os estudiosos e práticos das artes
cénicas, mas uma estrutura que poderia fenecer se não recebesse os paliativos
do rejuvenescimento. Sobre corpos e mentes que a ergueram, estão a despontar
novos corpos e mentes, com futuro.
Somos,
sobretudo, uma instituição que tem no seu historial a referência de António
Pedro como principal, talvez também a de Augusto Gomes, João Guedes, Dalila
Rocha… Pelo que já fez, até chegar ao nosso convívio, como havia feito António
Pedro, o Gonçalo é o futuro do TEP, sempre com a associação a seu lado. Tem
garra, inteligência, criatividade, para isso.
Há anos, nos 50
anos do TEP, escrevi um texto que intitulei “Não nos Mataram, Semearam-nos”, recorrendo à expressão bíblica.
Hoje, direi: “Semeámos de novo, colhei os frutos.”